quinta-feira, 9 de julho de 2009

Um conto real: imprensa elitizada...


- É ele.

Parecia a senha para um terremoto. Uma gritaria ecoou pela delegacia. Vários homens surgiram do nada. Cléverson foi arrastado para uma sala já levando socos pelo caminho. Só conseguia gritar "eu não sei que bar é esse, pelo amor de Deus". Quanto mais negava, mais forte era o espancamento. De vez em quando, paravam e desapareciam. Sozinho, Cléverson ouvia vozes que pareciam de uma multidão atrás das portas. Pelo barulho, a delegacia devia estar lotada. Quando ele achava que as surras tinham acabado, entravam na sala policiais que ele nem tinha visto ainda e começavam a bater.

Cléverson achou que o pior já tinha passado, quando ficou uma meia hora sem apanhar. Depois, um grupo de policiais entrou na sala e o levou algemado. Passou por corredores lotados, dezenas de homens com coletes pretos, PMs de uniforme, e não entendia de onde ele tinha tirado tanta fama. Foi colocado num camburão.

No caminho, começou a se preocupar de novo. Achava que seria morto e atirado em algum valão. Quando se deu conta de que o caminho era o da casa dele, não houve nem sombra de alívio. Dois policiais ficaram com Cléverson dentro da viatura. Outros três, em volta. E um policial encapuzado, à paisana, e mais quatro PMs invadiram a casa. Entraram aos berros, arma na cara de todo mundo, de dona Rosa, da filha Gisele de apenas sete anos, e da enteada Andréia.

As três foram encostadas a uma parede enquanto os policiais reviravam tudo. Jogavam ao chão roupas, livros, documentos, c0m gaveta e tudo. Pegaram documentos de Cléverson e, ainda gritando, concentraram a pressão sobre Andréia.

- Onde mora o resto da quadrilha?

- Eu não conheço os amigos do meu irmão - respondeu baixinho.

- Tá querendo ser presa? É claro que você tá no meio da bagunça.

Isso com dedo na cara. Andréia não se conteve.

- E desde quando vocês podem entrar assim na casa dos outros? Têm autorização do juiz?

- Olha aqui: se você não ajudar, quem vai sofrer na cadeia é o seu irmão, tá entendendo?

Cléverson agoniado no camburão. Os policiais voltaram falando naquela "filha-da-puta que deve tá envolvida até o pescoço". Pior do que isso, não poderia ficar. A irmã em risco por causa dele. Quando voltou à delegacia, não precisou esperar muito. Voltou a apanhar. E continuou negando. Já nem sabia por que insistia. Nunca achou que teria forças para resistir numa situação dessas.

Mas o fim estava próximo. Cléverson foi colocado outra vez no camburão. Agora seria levado para outra delegacia. Pelo trajeto, viu que ficava em zona chique, o Itaim, um de seus territórios de atuação. Não houve nenhuma conversa ou ritual de iniciação. Foi direto para uma sala e pendurado num sarrafo. Agora, no pau-de-arara, seria para valer.

Os homens enrolavam panos em pedaços de madeira e batiam, no peito, nas costas, nas pernas e na planta dos pés. Cléverson não conseguia nem gritar. De cabeça para baixo, ele viu um policial passando um óleo escuro na ponta de um sarrafo.

- Isso é para enfiar no seu cu, sua menininha.

Cléverson não aguentava mais, foi o limite. Gritou com o resto da força:

- Para, para, eu falo. Eu conto tudo, foi eu mesmo, foi eu, mas para. Eu vou contar.

Cleverson não sabia por onde começar. Mas não foi difícil, os policiais ajudaram. O delegado dizia para Cléverson:

- Foi você que atirou no homem que estava na mesa?

- Foi sim, senhor.

- E onde você estava dentro do bar?

- Não me lembro direito.

- Você não estava próximo às mesas da entrada?

- Estava sim, senhor.

- E por que atirou?

- Porque me apavorei. E o cara folgou comigo.

E assim foi. Cléverson concordando, o escrivão escrevendo. E em menos de uma hora estava pronta a confissão do líder do bando do Bar Bodega, autor de um crime que a imprensa classificou como dos mais bárbaros que a cidade já viu.


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O relato acima é um trecho do impressionante livro Bar Bodega - Um crime de imprensa (263 páginas, Editora Globo), escrito pelo jornalista gaúcho Carlos Dorneles.

O jovem que aparece sendo torturado é Cléverson Almeida de Sá, um negro morador da periferia da capital.

Os policiais, civis e militares, agem pressionados pela imprensa paulistana.

Dias antes, uma quadrilha invadira um boteco frequentado por clientes da elite social e deixara como saldo dois mortos - um dentista e uma estudante universitária.

Jornais, emissoras de rádio e televisão tomaram para si a indignação dos endinheirados e passaram a cobrar a solução imediata do crime e a identificação dos culpados.

A culpa de Cléverson era ser parecido com um dos acusados.

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Extraído do Alfarrábios...

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