sábado, 28 de março de 2009

Ele não conseguiu um habeas corpus...


Acusado de furtar carne morreu de AIDS na cadeia

Data: 29 de setembro de 2005

Local: Hospital Pedreira, Rua João Francisdo de Moura, 251, Vila Campo Grande (zona sul de São Paulo)

Vítima: Sérgio Roberto de Carvalho, 31 anos

Agentes do Estado: policiais civis do 80º DP, Vila Joaniza (zona sul de São Paulo)

Relato do caso: Sérgio Roberto de Carvalho, de 31 anos, morreu de tuberculose, conseqüência de AIDS não tratada, em 29 de setembro de 2005, no Hospital Pedreira, Rua João Francisdo de Moura, 251, Vila Campo Grande (zona sul de São Paulo).

A história de Sérgio, pai de um menino de sete anos, é a história de muitos presos que são levados à prisão por pequenos delitos, roubos de valor insignificante, e cuja prisão resulta em tragédia. É também a história de muitos presos doentes que, vítimas do absoluto descaso das autoridades penitenciárias e judiciais, são abandonados em condições insuportáveis, mesmo para pessoas sãs, e terminam por vir a morrer.

Sérgio e sua esposa Ana Paula Custódio viveram onze anos juntos. Passaram um período em Minhas Gerais, na cidade de Manga, perto de Montes Claros. Aí Sérgio cometeu seu primeiro delito, quando aceitou guardar uma carga roubada, pelo qual foi condenado a dois anos e quatro meses em regime aberto. Cumprida a pena, o casal mudou-se, com o filho pequeno para São Paulo, morando inicialmente em casa de parentes e depois alugando uma casa na Vila Joaniza. Sérgio arranjou um emprego em uma padaria na qual trabalhou bastante tempo, mas acabou sendo despedido. Foi nesse momento que se manifestaram os primeiros sinais da doença: um caroço no pescoço. Os médicos descobriram que ele estava com tuberculose granglionar e era soropositivo (nem sua esposa, nem o menino foram contaminados). Nessa ocasião Sérgio chegou a ficar internado por cerca de dois meses e em seguida continuou o tratamento no Hospital de Campo Limpo. Mas como era muito distante da casa deles, ele passou a fazer o tratamento no Ambulatório de Atenção Básica em DST Dr. Alexandre Kalil Yazbek, da Prefeitura Municipal, na Av. Ceci.

Em 2001 Sérgio cometeu um furto em um supermercado: subtraiu objetos que colocou escondidos em suas calças: champú, sabonetes, salame. Foi preso, permaneceu por 75 dias no 43º DP, porém recebeu apenas uma condenação de um ano e quatro meses em regime aberto. Saído na prisão novamente arranjou serviço em uma lanchonete, até com carteira assinada, mas não conseguiu permanecer mais que um mês: tinha febre e se sentia muito mal. Daí por diante só conseguiu trabalhar ocasionalmente como ambulante, vendendo uma coisa ou outra.

Em novembro de 2003 Sérgio foi novamente preso por furto em supermercado, desta vez em um Pão de Açucar. Ficou cinco meses preso, outra vez no 43º DP. Em relação a esse furto Sérgio foi condenado, agora em regime fechado, a dois anos e quatro meses, porém a decisão da sentença só saiu posteriormente. Antes que ela saísse, um equívoco levou à sua soltura: foi chamado a uma audiência na 20ª Vara que, na verdade, era referente ao processo pelo furto de 2001. Nessas condições a juíza surpreendeu-se que ainda estivesse preso e mandou soltá-lo.

Sem condições de trabalhar regularmente por causa dos efeitos da Aids em seu organismo, Sérgio incorreu outra vez no mesmo delito em 2005. Novamente foi preso, em 8 de janeiro de 2005, por furto em um supermercado: dessa vez um pedaço de carne valendo apenas R$ 12,00. Deste furto foi absolvido: ele estava vestindo uma bermuda e o juiz considerou difícil manter um pedaço de carne dentro dela. Porém Sérgio foi mantido preso, no 80º DP, por causa da condenação anterior, de 2003, a dois anos e quatro meses.

Sérgio Roberto de Carvalho permaneceu durante nove meses, até a sua morte, no 80º DP, sem nenhum tratamento ou cuidado especial. Sua esposa, Ana Paula, conta o sofrimento que passou para lhe transmitir um mínimo de conforto material e moral. As autoridades da delegacia não permitiram, desde o início, que ele recebesse roupas, permancendo o tempo todo com a mesma bermuda que havia convencido o juiz da impossibilidade de manter um pedaço de carne nela escondida. No início, medidas burocráticas absolutamente injustificáveis impediram que ela o visitasse: era preciso primeiro, em um dia de visita, levar toda uma série de documentos para fazer uma carteirinha de visitante, sem visitar, para depois então, em outro dia de visita, encontrar o marido. Em seguida as visitas foram suspensas por cerca de dois meses sob o pretexto de que teriam encontrado, nas celas espátulas feitas para cavar um buraco.

Quando as visitas foram reativadas Ana Paula pôde visitar o marido. Nesse momento ele estava aparentemente bem. Ela não conseguiu fazer entrar roupas, apenas alguns alimentos, cigarro e remédios. Ana Paula ia buscar no Ambulatório de Atenção Básica em DST os medicamentos de que ele necessitava. Porém, como os médicos não podiam examiná-lo para saber o nível de carga viral e prescrever os medicamentos do coquetel contra a Aids, só encaminhavam remédios contra as convulsões que ele tinha ocasionalmente

O estado de Sérgio começou a piorar, ele tendo tosse e febre constantes. Nesse período as visitas foram novamente suspensas e só retomaram com a intervenção da Pastoral Carcerária. Nos últimos tempos ele nem sequer se levantava, não comia nada e eram os outros presos da cela (havia nesse DP 4 celas cuja população oscilava entre 24 e 33 presos em cada uma) que cuidavam dele. Forraram o chão (já que como todos os outros, ele dormia no piso frio) e colocaram uma espécie de cortina. Os presos se revezavam, um cuidava dele de noite e outro de dia, davam-lhe água constantemente. Para que ele não tomasse banho de água gelada, como os outros, esquentavam a água em um fogareiro que havia na cela e lhe davam banho de cuia, colocando-o dentro de um saco de plástico. Na última visita ele sequer respondia às perguntas da esposa, apenas abria os olhos.

Nesse tempo todo Ana Paula insistia com o Delegado que seu marido estava precisando ser levado ao hospital e era tratada com o maior desprezo, “como bicho”, define ela. Tanto ela como outras mulheres e parentes de presos que a ajudaram a fazer pressão: que saíssem e não o amolassem, “sai, sai, sai”, dizia o Delegado! O carcereiro argumentava que Sérgio não estava mais tomando os remédios por frescura. E para humilhá-lo e à esposa, gritou bem alto que ele estava com Aids.

Só quando Sérgio já estava muito mal, no dia 22 de setembro, é que ele foi enviado pelas autoridades da Delegacia ao Hospital Pedreira, na rua João Francisco de Moura, 251, Vila Campo Grande (zona sul de São Paulo). Segundo o parecer do médico, Sérgio deveria ser internado, mas as autoridades policiais alegaram não ter escolta para mantê-lo hospitalizado. Foi só no dia 28, véspera de sua morte, sob pressão da esposa, de uma advogada do DIPO (Departamento Técnico de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária), pois ele já tinha tempo para passar para o regime aberto, e da Pastoral Carcerária que as autoridades policiais do 80º DP consentiram em encaminhar Sérgio ao Hospital Pedreira. Um preso foi chamado para carregá-lo até um carro, pois ele já não andava. Foi colocado na UTI e no dia seguinte, 29 de setembro, morreu.

É preciso considerar, nessa morte por total abandono, que Sérgio, pagando uma condenação de dois anos e quatro meses, com os cinco meses cumpridos anteriormente e com os nove que permaneceu no 80º, já tinha ultrapassado 1/3 da pena, tendo direito à prisão em regime aberto. Além disso, se ele estava cumprindo a pena relativa ao delito anterior, deveria ter sido transferido para um CDP ou um presídio, onde poderia receber um tratamento hospitalar adequado a quem é soropositivo. Sabe-se que as piores condições de detenção estão nas delegacias, que, aliás, o governo apregoa já não abrigarem mais presos. A insensibilidade, o pouco caso com a vida humana, a falta de responsabilidade com um preso que está sob custódia do Estado, levaram a esta absurda e inútil morte.


Fontes: Dossiê “Pena de morte ilegal e extrajudicial”, http://www.ovp-sp.org

Nenhum comentário: